— Esqueci como é que eu durmo — disse ansioso à mulher.
— Bobagem — ela resmungou, morta de sono.
— Minha posição na cama.
— Deita e dorme — disse a mulher imperativa, sem olhá-lo.
Foi a primeira insônia completa de sua vida. Noite branca, hora a hora, minuto após minuto, segundo por segundo. Virava e revirava-se na cama, esbarrava no mesmo desconforto. A vida deixava de fluir. Uma parada, um branco, uma ausência. A falta de uma ponte. Um elo perdido. Levantava-se, procurava esquecer, desligar-se daquele segredo comprometedor. Ligar as duas pontas do que sempre fora ao que devia continuar sendo, sem interrupção. Fumou cigarro atrás de cigarro. Porque não queria fumar fumava mais. Andava pela casa. Olhava pela janela a rua — a calçada vazia, a árvore, as lâmpadas acesas. Pensou, lembrou, repensou, relembrou. Cruel, a noite vagarosa, a interminável noite ancorada. E a sua pequena desprotegida solidão, palpável, aborrecido plantão para nada. Estar só e acordado o fazia mais só, mais acordado. Velava a si mesmo. Tentou dormir no sofá da sala, mas nem o sofá nem a cama acolhiam naturalmente o seu corpo, o seu sono. Dormir era perder a própria companhia.
O dia claro, alto sol, a casa restituída à sua visão familiar, a cozinha e a copa recendendo ao café fresco, fez a barba, tomou banho e saiu. Foi trabalhar — a incomunicável insônia, de que à luz do sol se envergonhava. Era inverossímil. E era preciso guardar o segredo. Como se escondesse um malfeito infantil, sua culpa.
— Que é que há com você? — a mulher deu enfim sinal de perceber.
— Nada.
— Então dorme.
O horror de ir para a cama. E a impossibilidade de contar, partilhar sua vergonha. Ficou mais sozinho. Já não era igual a todo mundo. Tinha medo e orgulho — um homem diferente. Sua singularidade ameaçava, mas consolava também. Sentia-se mais próximo de si mesmo.
— Por que você não consulta um médico? — a mulher desconfiava.
Pequenos derrames imperceptíveis — leu numa revista vagas informações sobre problemas que os neurologistas estudam. Falhas de memória, hiatos convulsivos. Pensou em consultar mesmo um clínico: medir a pressão, o sangue. Mas não gostava de médico e confiava na saúde de ferro. Deixou de preocupar-se com o nó da gravata. Esqueceu a insônia. Ridículo contar a sério que, na hora de dormir, já não sabia como se deitar. Não tinha importância.
Uma tarde, ao falar pelo telefone. Era com o sócio, com quem se dava bem, prosperavam. A princípio apenas um mal-estar indefinido. Depois não conseguia se lembrar da cara do sócio. A voz conhecida, a conversa nítida, o riso de sempre, os mesmos cacoetes — mas como era mesmo a sua fisionomia? Desligou o telefone e teve a impressão de que estava pálido. Apertou a cabeça entre as mãos. Fechou e abriu os olhos, pontinhos volantes. Como é a cara dele? Transpirava como se estivesse numa sauna. E aquele vazio: a cara, como era a cara? A cara sonegada, escamoteada como num passe de mágica. Tudo o mais era como de costume, mas a penetrante sensação de aviso o ameaçava. Ansioso sinal, plano inclinado.
Trancou-se no banheiro e lavou várias vezes o rosto. Precisava refrescar-se, afogueado. Um frio fogo o queimava. No entanto, refletida no espelho, sua cara normal, até favorecida. Menos rugas, as entradas da testa menos cavadas. Seu definido perfil: era ele mesmo, sem qualquer alteração. Como todo mundo, tinha uma fisionomia pessoal e intransferível. Mas o sócio — como era o sócio? Estúpido vazio. Sabia-se despojado de qualquer coisa essencial e, pela primeira vez, frágil, desprotegido contra o que podia acontecer, teve medo, tremeu de medo. Era um compromisso que não queria aceitar, mas de que não conseguia desvencilhar-se. Precisava apelar para alguém, pedir socorro. Recuar do abismo, mudar de rumo, rejeitar o que podia vir, o que sobrevinha, iminente, incontornável — e não tinha nome, nem configuração.
Desligado de tudo, sem interesse pelo trabalho, foi para casa mais cedo. A casa podia protegê-lo. Leu sem pressa o jornal e ligou a televisão. Era um homem normal, um homem como qualquer outro, mas, por trás dos seus gestos, de sua normalidade, um vazio o convocava. Telefonou para a casa do sócio, não o encontrou. Desejo de sair para a rua, ver gente, cada qual com seu perfil. Ver o sócio, recuperá-lo — o que só foi possível no dia seguinte, quando se avistaram no escritório.
— Nunca me viu? — por um momento o sócio pareceu estranhar a maneira como ele o fixava.
Queria e já não podia contar. E não poder contar o isolava definitivamente, como se, a partir dali, tivesse mudado de lado, passado para a outra margem. Dava adeus ao que vinha sendo, a tudo que era — ao dia-a-dia, aos negócios, ao confortável cotidiano. Mas lutava. Para qualquer nova emergência, não seria apanhado desprevenido. Obsessivamente, arquivava, armazenava traço por traço do sócio, seu rosto de sempre, inesquecível, doravante inescamoteável.
Uma tarde muito quente, no escritório, o ar-condicionado ronronando, vinha da rua exaltado, feliz com o resultado de um negócio que há semanas se arrastava, quando precisou telefonar para a mulher. Ao discar — lembrava-se do número, claro — deu por falta de alguma coisa. Um pássaro que de repente levanta vôo, uma paisagem que se oculta por trás de um obstáculo, um perfume que se esvai. Algo que se interrompe, curto-circuito na corrente elétrica. Uma ficha que desaparece. Ao alcance da mão, habitual, mecânico, um objeto que se subtrai — uma caneta, um par de óculos, uma anotação. Do outro lado da linha, na sua casa, o telefone chamava.
— Alô — disse ela.
Uma leve tonteira, como se levitasse, arrebatou-o. Perplexo, não aceitava o próprio silêncio e, para libertar-se, desligou. Sua mulher, não se lembrava da própria mulher. Seu nome, seu rosto — tudo permanecia a uma distância inatingível. Lá longe existia, não mais ao seu alcance. Entre ele e o que naturalmente sabia, seu patrimônio, um elo partiu-se, treva opaca, ausência. Mecanicamente, tirou a gravata e de pé, como num teste decisivo, refez o laço. Perfeito. Mas sua mulher. Às pressas, sem despedir-se, saiu imediatamente para casa.
— Chegou cedo — disse ela. — Alguma coisa?
— Dor de cabeça — ele disfarçou e, ao olhá-la, se convenceu do absurdo que era ter esquecido. Sua mulher. Ali estava inteira, com seu rosto, seu nome.
Trancou-se no quarto, espichou-se de costas na cama e leu de cabo a rabo o jornal da tarde. Uma incômoda sonolência fechou-lhe os olhos. A noite caiu sem que percebesse. Acendeu a luz da cabeceira e retomou o jornal como se o lesse pela primeira vez. Voltou à primeira página. Lia e relia o mesmo texto, palavra por palavra. Chegava ao fim e era como se não tivesse lido. Lia sem ler, desligado. Queria estranhar, alarmar-se, mas era como se tivesse sido sempre assim. E a certeza de que assim seria sempre, sem volta possível. Deixou cair o jornal no chão e, esticado na cama, sem qualquer protesto, acompanhava com os olhos uma pequena bruxa a cabecear tonta contra o teto.
— Que é que você tem? — até que enfim a mulher veio chamá-lo.
— Nada — respondeu, e estava perfeitamente em paz, resignado.
Brancas paredes despojadas, largo silêncio sem ecos. Desprendera-se de tudo. A longa viagem ia começar, sem rumo, sem susto, para levar a lugar nenhum. Uma mulher acabou de entrar.
— Quem sou eu? — ele perguntou num último esforço. E, para sempre dócil, conquistado, nem ao menos quis saber seu nome.
Brancas paredes despojadas, largo silêncio sem ecos. Desprendera-se de tudo. A longa viagem ia começar, sem rumo, sem susto, para levar a lugar nenhum. Uma mulher acabou de entrar.
— Quem sou eu? — ele perguntou num último esforço. E, para sempre dócil, conquistado, nem ao menos quis saber seu nome.
Otto Lara Resende
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